Um tratamento alternativo contra a covid-19 grave está causando o desabastecimento de um medicamento para artrite, usado inclusive por crianças, no Brasil. Segundo a SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia), pacientes já estão tendo o tratamento interrompido por falta da medicação.
O tocilizumabe é usado para diminuir a inflamação em pacientes com artrite reumatoide, artrite infantil (artrite idiopática juvenil) e em outras doenças sistêmicas autoimunes. Essa medicação também está sendo usada para diminuir a inflamação pulmonar em casos mais graves da covid, geralmente em pacientes na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Com a piora da pandemia, hospitais têm desviado o medicamento de um setor para o outro.
“Pacientes com artrite possuem, dentro da articulação, um processo inflamatório crônico, não tão excessivo como o da covid, mas que começa e vai destruindo o tecido do osso na articulação e desenvolvendo deformidades. O paciente tem dor nas juntas etc. A medicação ajuda nisso, nessa inflamação. Ela controla a doença, não deixando ter dor, rigidez nem corroer o osso”, explica Ricardo Xavier, presidente da SBR.
Na covid-19, o medicamento tem sido usado para diminuir a inflamação pulmonar gerada pela doença. Ela oferece um resultado já avaliado em alguns estudos, mas seu uso para tratar a doença não foi aprovado pelas agências reguladoras do Brasil e do exterior. É o que chamam de “off label”, quando o remédio é prescrito para tratamento fora da bula.
É uma situação diferente da hidroxicloroquina, também usada por pacientes reumáticos, mas que não só não tem comprovação no tratamento da covid como passou a ser contraindicada.
Segundo Xavier, há estudos científicos sérios que mostram que o tocilizumabe tem resultados positivos e diminuem mortes se aplicado no período certo de internação, mas, com a explosão de casos de covid-19, hospitais têm passado a usar o medicamento indiscriminadamente, causando uma escassez para os pacientes que precisam do tratamento até o fim da vida.
“Há hospitais que vão até a área que trata artrite reumatoide e fazem a solicitação do medicamento. Aí gera um dilema ético: vai tentar evitar a morte de um paciente ou atrasar o tratamento do outro?”, questiona Xavier.
A SBR ainda não identificou falta no SUS (Sistema Único de Saúde), mas já percebe em alguns hospitais e convênios particulares.
O UOL procurou o Ministério da Saúde para saber sobre a situação e o CFM (Conselho Federal de Medicina) para entender as recomendações de uso, mas não teve resposta até a última atualização deste texto.
Riscos da interrupção do tratamento
Segundo a SBR, a artrite reumatoide atinge entre 0,5% e 1% da população brasileira e 0,1% em sua forma infantil. Cerca de 20% dos pacientes adultos com a doença são tratados com tocilizumabe.
Como é uma doença crônica sem cura, o remédio precisa ser administrado durante toda a vida, geralmente em injeções mensais ou em aplicações subcutâneas semanais.
“Tirar esse medicamento pode causar retrocesso. Alguns pacientes com a doença bem controlada há bastante tempo podem ficar alguns meses [sem tomar]. Já em outros, a doença volta [a se desenvolver] em questão de um, dois meses. Com criança, pode ser muito prejudicial”, afirma Xavier.
Segundo ele, há ainda os casos mais raros, porém mais complicados, de pessoas que, por terem ficado algum tempo sem tomar a medicação, quando voltam, já não tem mais efeito. “Criam resistência, perde a eficácia”, completa.
Por isso, a SBR solicita, junto à AMB (Associação dos Médicos do Brasil), para que o governo e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) criem regras específicas do uso do medicamento na covid. “Deve haver uma janela de tempo daquele paciente na UTI que deve usar a medicação. A gente queria que ficasse bem claro”, conclui Xavier.
Fabricante diz não apoiar uso fora da bula
Por meio de comunicado atualizado pela última vez em 19 de abril, a farmacêutica Roche, que produz o Actemra (tocilizumabe), diz ter comunicado a Anvisa sobre o desabastecimento desde 23 de dezembro, com atualização em 31 de março.
“É importante ressaltar que a Roche atende integralmente a legislação brasileira e não realiza nem apoia nenhuma ação de promoção do uso de Actemra para indicações não aprovadas em texto de bula”, diz a nota.
Ao UOL, a farmacêutica afirmou que esta demanda “off label” é global. Para ampliar o fornecimento, a companhia pediu à Anvisa “a comercialização excepcional do medicamento com embalagem contendo informações em idioma e nome comercial (Roactemra) diferentes do registrado no Brasil” e teve a aprovação na última terça (27).
A previsão é que os medicamentos importados cheguem ao mercado brasileiro a partir da primeira quinzena de junho, “após a finalização dos processos mandatórios do ponto de vista logístico e de qualidade”, declarou a Roche.