A síndrome de difícil detecção e tratamento e muitas vezes incompreendida afeta 2,5% dos brasileiros, em sua maioria mulheres
Era fevereiro de 2018, a cantora Lady Gaga, 31 anos na época, anunciou o cancelamento dos últimos 10 shows pela Europa da turnê mundial Joanne. O motivo: dor severa que impossibilitava suas performances nos palcos. Nos bastidores da decisão, a fibromialgia, síndrome caracterizada pela dor crônica e generalizada. Meses antes, em 2017, a artista havia escancarado o problema em um documentário lançado na Netflix. Em diversas cenas, Gaga permitiu se mostrar urrando de dor, fato que jogou a luz dos holofotes sobre a síndrome. Neste mês, a campanha Fevereiro Roxo tem como objetivo promover a conscientização sobre o lúpus, o Alzheimer e a fibromialgia, tal como fez a cantora.
Ações como essa ganham força especialmente pelas particularidades da síndrome, que exigem, sobretudo, compreensão. Entendê-la é o ponto de partida de um dos aspectos mais importantes do tratamento: a educação do paciente e de seus familiares. Quem sofre de fibromialgia é obrigado a conviver com uma dor que nem sempre é compreendida pelos outros.
– Ela causa muitos sintomas que podem ser incapacitantes, mas não mata, não afeta órgãos, não faz lesões. Mas prejudica a capacidade de a pessoa funcionar. É preciso educar o paciente, o marido, a esposa, os familiares, pois são pessoas com dor a maior parte do tempo – afirma Ricardo Xavier, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).
O entendimento dessa síndrome complexa passa pela sensibilização central, ou seja, quando o cérebro está muito sensibilizado para qualquer estímulo periférico como um simples aperto de mão, por exemplo.
– A dor é um mecanismo de defesa. Quando apertamos a mão não é para sentir dor, pois não há dano. Se eu começo a apertar mais, esmaga o tecido, gera dano e dor. Pacientes com fibromialgia têm um sensor muito sensível de forma que um aperto de mão pode ser doloroso como se houvesse lesão – explica Xavier.
Influências genéticas, como a alteração em genes relacionados a neurotransmissores e receptores, gatilhos traumáticos e questões emocionais também parecem estar associadas ao quadro, acrescenta Inês Guimarães da Silveira, professora-adjunta de Reumatologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Considerada comum, a síndrome afeta cerca de 2,5% dos brasileiros, conforme estimativas. Desse total, observa Xavier, a maioria é do sexo feminino, em uma proporção que vai entre oito e nove mulheres para cada homem.
– Ainda não temos uma explicação clara para isso – diz o presidente da SBR.
Embora possa acometer pessoas de qualquer idade, o pico da incidência da síndrome ocorre por volta dos 40 anos.
– Alguns sintomas podem começar na infância ou adolescência, consequentes a sensibilização central, e, a partir de algum gatilho, levar ao diagnóstico principal, em geral entre os 30 e 50 anos – acrescenta Inês.
Mesmo prevalente, a fibromialgia não é detectada tão facilmente. É por esse motivo que as pessoas com a síndrome passam por vários especialistas até chegarem ao diagnóstico. Soma-se a isso o fato de que, diferentemente de outras doenças, exames comuns não identificam o problema.
– Dentro da nossa noção de doença, valorizamos muito resultados de biópsia e de exames que detectam alterações orgânicas. E essa é grande a dificuldade. Fibromialgia é uma disfunção do sistema nervoso central e periférico na percepção da dor, em que existem fatores que a gente conhece, mas como tudo se desenvolveu é um mistério – pontua Inês.
No entanto, a presença de pontos dolorosos na musculatura pode auxiliar na detecção.
– O exame físico é importante para detectar pontos de dor, como o paciente responde à dor, ao toque. Mas é importante observar principalmente os sintomas e as outras manifestações que podem ocorrer associadas – completa a docente da PUCRS.
Portanto, a identificação da síndrome se vale dos relatos dos pacientes que geralmente apresentam um conjunto de sintomas em comum: dor crônica e generalizada – nas partes inferior e superior, direita e esquerda do corpo – na maior parte do dia, por mais de três meses; sensibilidade ao estímulo tátil; alterações do sono, ou sensação de cansaço; dor de cabeça; alterações no intestino – ora constipação, ora diarreia; alterações cognitivas, e distúrbios do humor, como depressão, ansiedade e síndrome do pânico.
Indicação repetida por todos os especialistas ouvidos para esta reportagem, a prática de atividades físicas é, depois da educação do paciente e da família, a recomendação número um para amenizar o problema. A indicação é que sejam feitos, preferencialmente exercícios aeróbicos, no mínimo três vezes por semana.
– Vários estudos mostram que, sem dúvida, o principal tratamento é a atividade física, que é superior até do que o uso de medicamentos. O ideal é a caminhada, a corrida ou a natação. Se o paciente conseguir, pode associar alongamento ou reforço muscular – sugere Rafaela Martinez Copês, reumatologista e professora das universidades Federal de Santa Maria (UFSM) e Franciscana.
Mas como se exercitar com dor? Além da persistência, o segredo é fazer o exercício até chegar ao seu limite. Aos poucos, o corpo vai se acostumando, fazendo com que seja possível progredir.
– É normal ter dor no início. Até quem não se tem fibromialgia há dor após exercitar-se na academia, por exemplo. Quem tem a síndrome precisa saber que os primeiros três meses são de adaptação do corpo, depois ele vai se resolvendo e se adaptando – lembra Rafaela.
Ioga, tai chi chuan e acupuntura também são apontadas como possibilidades não farmacológicas para amenizar o problema. Por se tratar de uma síndrome complexa, a atenção aos pacientes é multidisciplinar, portanto, é importante contar com o apoio de um profissional de educação física e/ou fisioterapeuta na hora de se exercitar. A terapia cognitiva comportamental pode ser indicada como parte do tratamento, porque as emoções influenciam diretamente na percepção da dor.
– É preciso olhar para o paciente que não está evoluindo bem, se há necessidade do auxílio da psicologia e da psiquiatria dentro da visão terapêutica multidisciplinar – diz Inês.
Dentre as opções farmacológicas, não há um medicamento específico para o problema. Pode ser recomendado o uso de alguns tipos de medicamentos, como antidepressivos e ansiolíticos, que atuam nas substâncias envolvidas no sistema da dor, e analgésicos para as crises.
– Há vários medicamentos sendo estudados, como os derivados da maconha. Só que eles não estão comprovados, estão em estudos e, talvez, possam ajudar no futuro. Mas, agora, não estão liberados – destaca Rafaela.
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